O escrito que se segue é uma condensação efetuada por mim de trecho do livro Deuses, Túmulos e Sábios de C. W. Ceram (já citado por estas bandas) (no caso, retirados da 8ª edição brasileira, de 1959 [p. 37-42]), da Editora Melhoramentos (o livro ainda é editado e pode ser encontrado nas livrarias). Trechos em negrito ou grifados são meus.
O pai contava sagas, contos de fadas e lendas ao menino. Falava-lhe também – velho humanista – sobre as lutas dos herois de Homero, sobre Páris e Helena, sobre Aquiles e Heitor, sobre a forte Troia consumida pelas chamas. No Natal de 1829 deu-lhe de presente “A História do Mundo Ilustrada”, de Jerrer. Aí havia uma gravura representando Eneias com o filho pela mão, o velho pai às costas, fugindo da fortaleza em chamas. O menino olhava a gravura, os muros fortes, a sólida porta ocidental.
— Tróia era assim? Perguntava.
O pai acenava com a cabeça.
— E tudo isso foi destruído, completamente destruído, e ninguém sabe onde isso era?
— Isso mesmo, respondia o pai
— Não acredito, dizia o menino Heinrich Schliemann. Quando eu for grande, hei de encontrar Troia; e também o tesouro do rei.
O pai ria.
“As primeiras impressões de uma criança permanecem toda a vida.” Mas nele essas impressões da narração de feitos clássicos não foram causadas por muito tempo. Sua instrução terminou aos 14 anos, quando entrou como aprendiz para uma loja de secos e molhados da cidadezinha de Fürstenberg. Durante cinco anos e meio vendeu arenques, aguardente, leite e sal a varejo, moeu batatas para destilação e varreu a loja. E isso das cinco horas da manhã às onze da noite.
Esqueceu o que aprendera e o que ouvira do pai. Mas eis que um dia entrou na venda um empregado de moinho embriagado, debruçou-se sobre o balcão e, com voz tonitruante e cheia de sentimento, começou a recitar versos, com o desprezo de quem já fora estudante e assim se sentia espiritualmente superior aos outros. Schliemann ficou encantado. Não entendia patavina, mas, quando soube que eram versos da Ilíada de Homero, juntou seus pfennings e pagou ao ébrio um gole para que os repetisse.
Sua vida tornou-se aventurosa. Em 1841 foi para Hamburgo e engajou-se como grumete de um navio que zarpava para a Venezuela. Após uma viagem de 15 dias, o navio encontrou forte temporal e foi a pique diante da ilha de Texel. Schliemann, muito maltratado, foi parar num hospital. Com a recomendação de um amigo da família foi para Amsterdam como auxiliar de escritório. E se não foi bem sucedido em suas aspirações de percorrer as vastidões geográficas, conseguiu contudo memoráveis conquistas no terreno do espírito.
Numa pobre água-furtada, sem aquecimento, começou a estudar novas línguas. Seguindo um método completamente incomum, por ele mesmo inventado, em dois anos aprendeu inglês, francês, holandês, espanhol, português e italiano.
O mesmo êxito que tinha no estudo ele o tinha também comercialmente. É desnecessário dizer que nisso tinha sorte. Em 1850 estava na América do Norte. A anexação da Califórnia aos Estados Unidos deu-lhe automaticamente a cidadania norte-americana. Só em 1856 iniciou o estudo do grego moderno, do qual, ainda uma vez, ele se assenhorou em seis semanas. E em mais três meses dominou as dificuldades do hexâmetro homérico.
Escreve um dia: “O céu abençoara milagrosamente os meus empreendimentos comerciais, tanto que em fins de 1863 eu me achava de posse de uma fortuna a que a minha ambição jamais havia ousado aspirar”. E conclui: “Por isso – diz ele singelamente – retirei-me do comércio, para me dedicar exclusivamente aos estudos que maior encanto tem para mim.” Em 1868 partiu para Ítaca, pelo Peloponeso e a Tróada.
Isso não parece um conto de fadas? Um homem que obtivera o maior dos êxitos comerciais queimar atrás de si todos os navios do seu negócio para seguir o sonho da sua juventude? Um homem ousar desafiar o mundo científico, tendo na cabeça pouco mais do que Homero, opor sua fé à dúvida em Homero, desprezar a pena dos filólogos, para tirar a limpo com a pá o que até ali uma centena de livros havia perturbado?
No tempo de Schliemann, Homero era o cantor de um antigo mundo submerso. E acrescia mais isto: a Grécia da Ilíada devia ter sido um país de alta cultura. Mas ao tempo em que os gregos entravam na luz da nossa história datável eram conhecidos por nós como um povinho insignificante, que não se distinguia nem pelo fausto nem pelos seus palácios, nem pelo poderio dos reis, nem por armadas de mil navios. Com efeito, era mais fácil crer na inspiração poética do homem Homero do que supor que a uma civilização completa se seguisse a decadência da barbaria primitiva, sobrevindo depois novamente o auge da cultura helênica.
Mas não foram ponderações dessa natureza que conseguiram desviar de sua fé Heinrich Schliemann, o sonhador de mundos homéricos. Ele lia Homero como se fosse a mais pura realidade. Quando examinava a descrição do escudo gorgônico de Agamemnon, quando lia sobre a correia do escudo, que tinha a forma de uma cobra tricéfala, sobre os carros de combate, sobre armas e instrumentos, descritos com todos os detalhes, não duvidava de que tinha na sua frente a descrição de uma realidade helênica. Todos aqueles heróis: Aquiles e Pátroclo, Heitor e Eneias, seus feitos suas amizades, seu ódio e seu amor seriam inventados? Ele cria na sua existência individual. E comungava nessa fé com toda a Antiguidade grega e com os grandes historiadores Heródoto e Tucídides, que sempre haviam considerado a Guerra de Troia um acontecimento real, e todos seus participantes, personagens históricas.
Com essa fé, aos 46 anos o milionário partiu não para a Grécia moderna, mas diretamente para o reino dos aqueus. E não havia de confirmá-lo o entusiasmo o fato de, ao primeiro encontro com um ferrador de cavalos de Ítaca, este lhe apresentar sua mulher com o nome de Penélope e seus filhos como a Odisseu e Telêmaco?
Leia a Parte II >